Uma solução para a inquietação do pertencimento - edição #11
+ um pouco sobre a Bienal de Veneza
Preciso dizer que achei uma “solução” para essa inquietação da falta de pertencimento. (Pelo menos a minha). E ela veio depois de terminar de ler o livro do Mohsin Hamid, “Exit West”. Então vou contar porque ler este livro me fez repensar toda essa coisa de pertencimento. Vem comigo.
Sempre que eu consumo algum conteúdo, ele permanece na minha cabeça por algum tempo. Às vezes esse processo é bem consciente, outras vezes totalmente inconsciente. Com esse livro, este processo foi bem consciente, inclusive por isso tô conseguindo escrever sobre agora.
O livro conta a história de dois jovens que vivem num local onde está ocorrendo uma guerra civil e decidem fugir em busca de melhores condições de vida. Até aí, “tudo bem”. Dois refugiados mudando de país e as consequências disso. Me peguei ali comparando minha história com a deles, guardadas as devidas proporções. Porém, durante toda a história, o autor, que é paquistanês, faz pausas e conta em poucos parágrafos a história de alguém em outro lugar do mundo. E foi numa dessas histórias que a comparação que eu fiz foi além.
Ele conta a história de uma senhora que viveu a vida toda na mesma casa. Naquele mesmo local, ela morou com os pais dela, com dois maridos e os filhos. Ela nunca mudou de endereço, todavia sentia que o mundo em volta dela havia mudado. Ela já não sabia os nomes de todos os vizinhos como antigamente. Ela sabia de nenhum, mais especificamente, e não fazia questão de aprender porque, segundo o autor, os vizinhos compravam e vendiam as casas como se elas fossem um investimento. (Atitude que concluí que ela desprezava pelo fato de ser tão apegada à casa). Muitos vizinhos pareciam se sentir mais em casa do que ela. E aí eu soltei um pouco a minha imaginação também e imaginei que as construções ao redor dela deviam ter mudado também. Isso porque lembrei da minha cidade natal e sim, tudo mudou ao redor da casa onde eu morava com meus pais. Logo, deve ter mudado na casa dessa senhora também.
O capítulo acaba com aquelas palavras que cite no último post e vou repetir porque merecem essa repetição:
(…) everyone migrates, even if we stay in the same houses our whole lives, because we can’t help it.
We are all migrants through time.
Minha tradução: (…) todo mundo migra, mesmo se ficarmos na mesma casa nossa vida inteira, porque não podemos evitar. Somos todos migrantes através do tempo.
Enfim, joguei esse monte de detalhes do livro mais uma comparação minha para quê? Porque pra mim, pertencer até então era sobre ter para onde voltar. Ter um lugar onde eu tinha certeza que tudo ia estar exatamente como estava quando eu deixei. Isso me dava segurança. Porém, este livro me fez pensar que na verdade não existe lugar para onde voltar e muito menos lugar imutável. Mesmo que eu permaneça toda minha vida no mesmo lugar, como essa senhorinha, a vida vai acontecer ao meu redor e tudo vai mudar. Cabe a mim escolher ficar ou procurar um lugar novo.
Ou seja, pertencer não é sobre o lugar onde eu estou e as sensações que este lugar me provoca e sim sobre o que eu faço com os estímulos que sofro deste lugar. Como diria Lulu Santos:
Tudo muda o tempo todo no muuuundo
Não adianta fugir
Nem mentir pra si mesmo agora
Há tanta vida lá fora
Aqui dentro, sempreComo uma onda no mar
Agora que cheguei ao fim da reflexão, preciso fazer este addendum e falar sobre um dos (talvez o mais) eventos culturais mais famosos e prestigiados do mundo: a Bienal de Veneza. Ela começou no último dia 20 de abril e o tema é, nada mais, nada menos que Stranieri Ovunque, Estrangeiros por Toda Parte (numa tradução minha mesmo, do italiano para o português). Ou seja, não podia deixar de falar sobre isso aqui.

Pela primeira vez na sua história, a bienal tem curadoria de um latino e, ainda por cima, brasileiro chamado Adriano Pedrosa. O Adriano falou uma frase que tá reverberando na minha cabeça até agora:
“Em primeiro lugar, onde quer que você vá e onde quer que esteja, você sempre encontrará estrangeiros – eles/nós estamos em toda parte. Em segundo lugar, que não importa onde você esteja, você é sempre verdadeiramente, e no fundo, um estrangeiro”.
Ai meu coração.
Desde o primeiro dia, tô fissurada devorando todo tipo de conteúdo de quem já esteve por lá. Por enquanto, as obras que eu mais amei são do Dalton Paula.

Enfim, esse tema sobre “se sentir um estrangeiro” tá cada vez mais presente por todos os lados onde eu olho e isso me deixa muito feliz. Afinal de contas, eu comecei esta newsletter através de um processo meio “solitário” porém, quanto mais olho para esses lados, mais me dá vontade de escrever aqui.
Espero que a vontade de vocês de vir aqui e ler esteja numa crescente também.
Ivy, essa edicao da newsletter esta primorosa. <3
Concordo e reforço que o sentimento de pertencimento é mais complexo do que a gente imagina. Vai muito da nossa percepção. Tendo o mesmo CEP durante uma vida inteira, como a personagem do livro, ou já acumulando mais de 15 CEPs diferentes do histórico, tudo varia de acordo como o coração se aninha diante das mudanças da vida. Pra quem tá sempre em movimento e já se mudou de Estado ou de país, é questão de tempo até se sentir meio parte de tudo e de nada. Adorei sua reflexão e fiquei curiosa pra ler Exit West!