Depois da mãe, vem o pai - edição #23
Sobre dar razão ao irracional e ter alguém que nos apoie
Mais de uma pessoa me escreveu dizendo que se emocionou lendo a última edição. Eu, na minha pretensão, achei que entendia o que elas queriam dizer — até que, assistindo a uma aula da PUCRS sobre escrita criativa, ouvi o conto Estacas, do George Saunders, e comecei a chorar minutos antes de encontrar com uma agente imobiliária que, mais tarde, me ajudaria a achar meu futuro lar. Não é fácil se emocionar e ter que continuar vivendo ao mesmo tempo.
Deixo o conto aqui embaixo, caso alguém também queira se emocionar:
Estacas - George Saunders
Todos os anos, na noite de Ação de Graças íamos atrás de Papai quando ele arrastava a roupa de Papai Noel para fora e a vestia numa espécie de crucifixo que tinha feito com canos de metal no quintal. Na semana do Super Bowl o poste era vestido com um uniforme de futebol americano e o capacete de Rod, e Rod tinha que se entender com Papai se quisesse tirar o capacete dali. No Dia da Independência o poste era o Tio Sam; no Dia dos Veteranos, um soldado; no Halloween, um fantasma. O poste era a única concessão de Papai à diversão. Só podíamos tirar um giz de cera da caixa de cada vez. Numa noite de Natal ele gritou com Kimmie porque ela desperdiçou uma fatia de maçã. Ele nos vigiava enquanto despejávamos ketchup na comida, dizendo, Já chega já chega já chega. As festas de aniversário consistiam de cupcakes, sem sorvete. A primeira vez que levei uma namorada em casa ela disse, Qual é a do seu pai com aquele poste de metal?, e eu fiquei em silêncio, piscando.
Saímos de casa, casamos, tivemos nossos próprios filhos, descobrimos as sementes da mesquinhez também dentro de nós. Papai começou a vestir os canos com mais complexidade e uma lógica menos discernível. Cobria-os com algum tipo de pele animal no Dia da Marmota e levava para fora um holofote para produzir uma sombra. Quando um terremoto atingiu o Chile ele deitou o poste de lado e pintou com spray uma fenda na terra. Mamãe morreu e ele vestiu o poste como a Morte, pendurando na barra transversal fotos de Mamãe quando bebê. A gente passava por ali e encontrava em redor da base estranhos amuletos da juventude dele: medalhas militares, ingressos de teatro, velhos abrigos de moletom, bisnagas de maquiagem de Mamãe. Num outono ele pintou o poste de amarelo-escuro. Cobriu-o com cotonetes, para agasalhar, e propiciou-lhe uma prole fincando pelo quintal seis cruzes feitas de estacas. Estendeu um barbante entre o poste e as estacas, colando com fita adesiva nesse varal cartas com pedidos de perdão, admissões de erro, apelos por compreensão, tudo escrito com letra convulsa em fichas de arquivo. Pintou um cartaz que dizia AMOR e pendurou-o no poste, e outro que dizia PERDÃO? e depois morreu no corredor com o rádio ligado e vendemos a casa para um jovem casal que arrancou o poste e deixou-o na beira da calçada no dia do lixo pesado.
Fonte: https://bibianeferreira.wixsite.com/escritora/post/estacas-de-george-saunders-e-as-teses-sobre-o-conto-de-ricardo-piglia
O conto — que não parece exatamente um conto — foi escrito pelo George e retrata aspectos da vida do pai dele e um ritual que o velho fazia com pedaços de ferro no quintal.
Meu pai também tinha um ritual (já comentei aqui antes) que consistia em filmar ocasiões específicas — e outras totalmente aleatórias — do nosso dia-a-dia. Além dos natais, eu e meu irmão temos registrados em vídeo vários momentos da infância: meu pai chamando meu irmão de “seu bonzinho”, eu com dois anos colocando minha boneca pra dormir e saindo de fininho pra não acordá-la, e eu perto da Páscoa, cantando “coelhinho que traz o ovinho pra mim” - sim, eu simplifiquei a música numa versão “direto ao ponto que interessa”.

Pois esse mesmo homem que, nos anos 80 e 90, comprou uma filmadora para registrar momentos tão bonitos, hoje se recusa a usar celular com internet, ter e-mail ou sequer ler mensagens SMS. Uma máquina de datilografia e uma calculadora eletrônica — daquelas enormes, com rolo de papel, ligadas na tomada — são instrumentos do dia a dia dele.
Sabendo disso, quando vi que estavam doando uma calculadora dessas na igreja perto do nosso apartamento, fui logo conferir se ele queria. E ele queria. Com muita convicção.
Guardei a calculadora no meu apartamento enxuto por meses. No dia do meu embarque para o Brasil, coloquei ela na mala de mão pra não correr o risco de quebrarem. Quando passou no raio-X, separaram das outras pra ser examinada com cuidado.
— O que é isso aqui? — perguntou a fiscal.
— Uma calculadora eletrônica — respondi.
— Vou ter que passar isso sozinho no raio-X de novo.
Ela passou e me liberou. Em São Paulo, embarcando pra Porto Alegre, a cena se repetiu — com um desfecho diferente.
— O que é isso aqui?
— Uma calculadora eletrônica.
— Mentira? — disse o fiscal, rindo.
— Aham, pode acreditar.
— Tá bem, pode passar.
Depois de ter mais dor de cabeça com a tal da calculadora do que por ser imigrante no aeroporto, finalmente cheguei ao destino. Minha mãe, já meio sem paciência, dizia pro meu pai desistir daquilo e usar um computador de uma vez. Mas eu comprei a ideia dele.
Começamos então a missão de encontrar um transformador que convertesse 220v pra 110v. Conversamos com dois técnicos, achamos a solução, e hoje a calculadora está lá, funcionando perfeitamente no escritório dele.
Seja lá por que motivo meu pai escolhe algumas tecnologias e rejeita outras — e em tempos diferentes — o que sei é que curti demais embarcar nessa com ele. Bem melhor do que levar um souvenir de Boston ou uma camiseta do time de basquete daqui.
Se meu pai fosse como o pai do George e decidisse fantasiar estacas de metal no quintal, eu ajudaria a pensar nos figurinos. Às vezes, tudo que a gente precisa é de alguém que apoie nossas loucuras, que compre nossas ideias menos racionais e acredite que aquilo é importante pra nós.
Obrigada por comprarem a minha loucura de escrever!
Percebi que muita gente nova chegou por aqui desde o último post. Para você, que acabou de chegar: bem-vinda!
Minha querida Ivy, lendo teu texto vi o meu compadre sentado na mesa dele com a tal calculadora. Acredito que agora não muda mais. Celular pré-histórico, não gosta de ligar o ar condicionado do carro e outras coisinhas mais.. O que não muda nele (graças a Deus)é o amor pelas pessoas que fazem parte da vida dele, isto eu tenho certeza!! Amei teu texto!!!
Texto lindo Ivy!